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quarta-feira, 23 de abril de 2014

A MÁGOA


“Que o sol não se ponha sobre as nossas iras”.

Tanto por conta dos seus inúmeros transtornos como por causa do sofrimento que lhe circunda, a mágoa represada restringe a nossa capacidade criativa diante dos desafios. Manifestando-se como rancor, ressentimento e desforra, ela “azeda” as nossas relações e mina a nossa alegria, sobretudo quando mergulhamos na amargura e na busca por vingança, ante aos agravos que experimentamos. A mágoa é uma dor sem fim, alimentada pelo perfeccionismo que buscamos, esquecendo-se que o perfeito é uma utopia. Por tudo isto, lidar sabiamente com a mágoa é fundamental ao nosso amadurecimento psicológico e espiritual.
Viciado na autotortura, o amargurado sempre deixa para depois as coisas que precisa resolver. Da mesma maneira que não se livra das suas dores, “esquece” que o passado e o futuro são inúteis ao seu atual existir, pois boas ou dolorosas as nossas experiências sempre se manifestam no aqui-agora. O único ar que respiramos é o ar do hoje. É impossível tragar o que já passou, do mesmo modo que é pura fantasia solver o porvir. Transforme a raiva que sucede as suas mágoas num eficaz solvente moral dos seus inúmeros problemas. Quando a raiva é coibida, transmuda-se em mágoa. Se, por alguma razão, você tem medo de expressá-la, alojará em seu coração um sentimento autodestrutivo o qual só será eliminado através do perdão e do amor próprio.
Diante da imperfeição humana, é praticamente impossível viver sem dores e desgostos esporádicos. Aliás, diante da imperfeição humana, mais cedo ou mais tarde, sofreremos algum tipo de dano, o qual poderá principiar o surgimento da mágoa. Caso não sejamos conscientes de que o relacionamento perfeito não existe, acumularemos alguns ferimentos, físicos e morais. Caso não sejamos conscientes de que o relacionamento perfeito não existe, também é grande a possibilidade de nos tornamos amargos, desiludidos e autoflageladores. Na vida do amargurado, a permanência indefinida da dor origina-se da entrega insana ao passado. Como se tudo deixasse de existir, ele autoaprissiona-se no fato que lhe constringe e abandona às favas o seu livre-arbítrio e o direito sacro de experimentar o único tempo que realmente possui: o tempo presente. Além da prisão temporal criada e mantida por sua própria consciência, quem mergulha na vitimização “eterna” da mágoa também diz não possuir forças suficientes para livrar-se da dor. No entanto, o amargurado é incapaz de parar de sofrer porque ele adora sofrer. Ou seja, não sabe viver sem atrair a atenção alheia ao seu “pesado fardo”. O rancoroso não aceita as deficiências alheias. É um perfeccionista patológico incapaz de viver num mundo cheio de defeitos, pois também não aceita os próprios deslizes. Inábil para expressar a raiva, não anuncia os seus desagrados e considera-se acima do bem e do mal. Vive afastado do presente e apega-se ao faz de conta de sua mirabolante consciência. Enfim, atua numa realidade fantasiosa na qual não há falhas, “abafando” as suas emoções diante de um mundo asqueroso e diametralmente distinto da idealização crônica que alimenta todos os dias.
Como o perdão liberta-nos da dor e das mágoas, mede-se a sanidade psicológica humana pela capacidade manifesta de perdoar. Quem perdoa vive com maior alegria visto que transmuta a depressão numa excelente oportunidade de crescimento pessoal. É a tônica da máxima consagrada na frase “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aqueles que nos ofenderam”. Portanto, a melhor saída diante da mágoa é o perdão imediato. Afinal ele, ao eliminar todas as toxinas e machucados emocionais que limitam a manifestação plena do nosso potencial, alivia e cura todas as dores. Mesmo diante desta constatação, verifica-se que perdoar ainda é uma atitude rara. Porque é tão difícil perdoar? O perdão é tão incomum porque há dois equívocos que delimitam mal a quem realmente ele beneficia. Há quem acredite que perdoar é livrar da culpa o ofensor. Perdoar, no entanto, é livrar-se dor. É autopresentar-se com uma dose bem graúda do aqui-agora, deixando os ofensores e os sofrimentos no passado. Da mesma maneira, há quem pense que perdoar é esquecer a dor. Perdoar, contudo, não é esquecer. Perdoar é aprender a livrar-se dos malefícios experimentados, ponderando qual será a natureza do relacionamento a ser mantido com o ofensor no porvir. Logo, se for necessário literalmente seguir à risca frase “Livra-nos, Senhor, do mal”, que assim seja! Fazer de conta que nada aconteceu não é perdoar. Perdoar é agir proativamente livrando-se de vez do sofrimento, cortando o mal pela raiz, ao experimentar o doce cálice do amor próprio.
Se a sua intenção é viver com alegria e amor, resolva já os seus problemas, sobretudo os seus problemas de relacionamento. Pior do que um arranca-rabo é abrigar raiva no seu coração, visto que ela transmudará (mais do cedo do que você imagina!) em desprezo, distanciamento, frieza, hostilidade e traição. Aprenda com a natureza. Observe como os animais resolvem as suas dificuldades. Se é para brigar pelo território que desejam, os gatos pelejam imediatamente. Aprenda com a natureza anímica das crianças que descarregam logo a ira que experimentam quando perdem um brinquedo no parque. Se a ira divina é a ira infantil, entregar-se à mágoa é viver a vida alheia. É literalmente autodestruir o seu direito nato à felicidade por conta do medo de se autoexpressar. Se você é incapaz de expor aquilo que lhe incomoda, alojará no seu íntimo uma poderosa energia a qual poderá tragá-lo num interminável círculo vicioso de autoflagelação.
Quem não perdoa os erros alheios, também não perdoa a si mesmo. Quem não perdoa os deslizes alheios, além de não amar ao próximo, também não exercita o autoamor. Quem não perdoa por puro capricho, além de carregar as ofensas alheias na alma, conviverá com a presença ofensor na sua consciência, indefinidamente. Não perdoar é aprisionar-se ao passado. Quando você não perdoa os erros alheios, ao invés de livrar-se dos seus agressores, também prosseguirá cativo ao falacioso autoperfeccionismo. Quando nos sentimos ofendidos com os erros alheios, devemos, portanto, oferecer a anistia autolibertadora do perdão. Não importa o tamanho da ofensa. O que importa é perdoar livrando-se enfim daquilo que nos incomoda, impedindo que o sol se ponha sobre as nossas iras!